domingo, 29 de junho de 2014

A Copa ao redor do meu umbigo (IV): Brasil 1 x 1 Chile (3 x 2 nos pênaltis)

Eu avisei que iria ter muito sofrimento. E não se iludam, vai piorar. Não por acaso, na coletiva de imprensa após o jogo o Felipão deixou claro que acabou o amor. Mas se o amor acabou, as crônicas continuam. Segue a quarta.

Carta aberta a Júlio César

Rio de Janeiro, 29 de junho de 2014

Prezado Júlio César,

Escrevo esta carta não somente como torcedor, mas como goleiro. Nélson Rodrigues via a mesma dramaticidade em uma pelada de rua e em uma final de Copa do Mundo. Eu sempre concordei com ele e, nesse sentido, posso dizer que goleiros profissionais e de pelada possuem de fato a mesma essência. Explosão, reflexos, intuição e elasticidade. Todos os goleiros devem ter essas características. Mas, antes de tudo, goleiros devem ter coragem. Falo também de coragem para se jogar nos pés dos atacantes ou para ir de encontro à bola em chutes fortes. Mas não é disso que estou falando. 

Goleiros, pelo menos os bons, devem ter coragem de se expor. Somente quem já tomou um frango - e no nosso caso não foram muitos - sabe do que eu estou falando. Se um atacante perde um gol ou um zagueiro comete um erro, não tem tempo para pensar muito sobre isso durante o jogo. Logo é acionado novamente ou recebe uma outra bola para tentar de novo. Nós, não. Enquanto o jogo se desenrola no outro lado do campo ficamos solitários na área. Inevitável que fiquemos remoendo a falha. E quando a bola voltar para cumprir seu destino de balançar as redes temos que estar prontos de novo. E mesmo que sejamos brilhantes durante o resto da partida, todos - inclusive nós mesmos - se lembrarão da nossa falha. E se o resultado for negativo, essa falha será a única coisa que será lembrada. Por isso, acabamos desenvolvendo um certo tipo de força mental que os outros jogadores usualmente não possuem. Ser goleiro é, de certa forma, praticar um esporte dentro de outro esporte.

Mas mesmo os goleiros merecem ser redimidos. Por isso inventaram a disputa por pênaltis. Dizem que é um modo de desempatar confrontos em jogos de futebol. No entanto, tenho a convicção de que é um modo de se fazer justiça conosco. Pode parecer estranho. Aparentemente tudo conspira contra nós, como sempre. A meta é enorme e a distância até a linha do gol é pequena. Mas é justamente isso que nos favorece. Ficamos lá, esperando a cobrança, com a alma leve de quem não tem mais nada a perder. Os batedores têm que caminhar solitários do centro do campo até a marca penal. Nesse caminho acabam tendo que pensar na enorme responsabilidade que está sobre seus ombros. Boa parte deles não está acostumada com isso. Disputa por pênaltis, mais do que futebol, é uma disputa mental. E é nisso que reside a nossa vantagem. Só quem já viu o pavor nos olhos de um batedor durante uma disputa por pênaltis vai entender plenamente o que estou dizendo. Somente goleiros sabem como é a sensação de defender uma cobrança em um jogo decisivo. Por isso, imagino como você deve estar se sentindo agora.

E no seu caso a redenção foi amplificada. Confesso que também xinguei muito você por conta daquela falha no jogo contra a Holanda há quatro anos. Também sou torcedor. E também vociferei contra a sua convocação. Você era o melhor goleiro do mundo em 2010, mas atualmente não é nem o melhor goleiro do Brasil. Sequer acho que você está entre os três melhores. Não deveria, portanto, estar no gol da seleção nesta Copa do Mundo. Mas isso não interessa mais, não é verdade? De todo modo, não acho que você mereça desculpas. Escolhemos ser goleiros. Ou, às vezes gosto de pensar assim, talvez não tenhamos tido escolha. Talvez sejamos escolhidos. Então, não há o que fazer quanto a isso. Apenas resigne-se.

E, nos próximos jogos até a final, nada do que você fez no jogo contra o Chile vai contar. Se falhar de novo, vai ser lembrado como o goleiro que pôs tudo a perder em duas Copas do Mundo. Então, vai ter que caprichar. No entanto, veja o lado bom das coisas. Muitos de nós não tiveram a segunda oportunidade que você recebeu. Barbosa morreu carregando o fardo do Maracanazo. Você pode pensar que eu não sei do que estou falando. Nem profissional eu sou (o mundo está mesmo cheio de injustiças). Nunca joguei para mais do que mil pessoas. Mas milhares de goleiros de pelada, como eu, ainda se lembram, anos depois, daquele campeonato em que falharam e colocaram tudo a perder. Lembre-se disso, sua trajetória está longe de ser única, apenas é mais conhecida pelo público. Afinal, não há diferenças essenciais entre peladas e jogos de Copa do Mundo. Portanto, você não tem escolha: siga em frente. 

No mais, continuo torcendo pela seleção.

Grande abraço

Mauricio

PS. Durante a semana dê enfase aos treinamentos de bolas cruzadas sobre a área. Em particular dos cruzamentos vindos da direita. Você sabe, é o Daniel Alves que está desse lado e durante os próximos jogos essa jogada ainda vai acontecer muitas vezes. E, se der, aproveita que você está com moral e pede para o Felipão escalar o Maicon. E pede também para o pessoal dar uma treinada nas cobranças de pênalti, não é sempre que dá para pegar duas e contar com a trave em uma terceira.

Às vezes é difícil perceber, mas temos todos a mesma essência

Leia as crônicas anteriores:

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